Monday, April 17, 2006

Chapada Diamantina

Curioso imaginar um lugar onde você sonha ir, faz anos, e que jamais pisou.
Em maio de 2005 me juntei a um grupo de amigos do
CEB para fazer um trekking na Chapada.
Sabia, de antemão, que seriam 10 dias de caminhadas, carregando nossas pesadas mochilas e acampando em campings selvagens.
No dia 2 de maio fiz um vôo de 2 horas até Salvador, onde perambulei, por horas, pelas ruas da Cidade Alta, até tomar o ônibus que me levaria à cidade de Lençóis, em pleno coração baiano. Eu, que só conhecia Salvador de alguns sobrevôos aproveitei para conhecer o famoso Pelourinho, onde me deparei com um agitado grupo de jovens tocando seus tambores e dançando a timbalada. Aquele pequeno largo triangular de piso inclinado não correspondia à fama que lhe atribuíam. Já, caminhando um pouco mais para cima, na direção do Elevador Lacerda, pude contemplar duas grandes praças interligadas por um beco diagonal e que ostentam um belo e bem conservado casario, igrejas e ruínas que foram escavadas e protegidas por grades, bem sinalizadas e iluminadas.
Camping LumiarÀs 21 horas dirigi-me à rodoviária, onde tomaria o único ônibus que liga Salvador a Lençóis. Saímos às 23 horas e, pontualmente às 6 da manhã desembarquei na pequena rodoviária que fica na margem oposta do rio.
Uma van que esperava um grupo de turistas me ofereceu uma carona e fui conduzido até o camping que fica no quintal da Igreja do Rosário. Um belo gramado sob frondosas árvores, à beira do rio, era uma espécie de boas vindas para os próximos dias que passaria por lá. O dia ainda não estava claro, mas dava para ver mais 4 barracas dos meus companheiros que tinham chegado há 2 dias. Assim que estiquei a primeira lona, observei a aproximação do Airton, um dos companheiros de trekking que fiquei conhecendo naquele momento. Depois de um dia perambulando por Salvador e uma noite mal dormida recolhi-me no casulo e dormi por duas reconfortantes horas.
Quando acordei, todo o grupo já estava de pé e pronto para uma caminhada pelos arredores. Integrei-me ao grupo e fomos conhecer o Mirante, o Poção, a Cachoeira do Sossego e da Primavera além dos Salões de Areias Coloridas. Impressionante a coloração avermelhada das águas e o tipo de rocha que compõe o leito do rio, dando a impressão de terem sido construídos pelo homem acrescentando seixos à argamassa dando a aparência de
um grande pé-de-moleque. Nada disso, tudo foi pura obra da natureza. Mas, o impressionante mesmo foi o que o homem desfez.
A partir de meados do século XIX a Chapada foi invadida pelos exploradores de diamantes e seus sequazes Lençóisgarimpeiros que vislumbrando a riqueza fácil desfiguraram os rios, suas margens e as encostas das montanhas. Hoje o que se vê são restos de escavações num cenário desolador minimizado pelas enxurradas que carregaram boa parte das sobras para as planícies e leitos
assoreados dos rios.
Na parte da tarde nos reunimos a mais 6 componentes do grupo que chegaram no ônibus diurno e o resto do dia foi dedicado ao descanso e passeios pela cidadezinha de Lençóis que guarda em seu eclético conjunto arquitetônico a importância que teve no apogeu da exploração do diamante. Hoje, não só Lençóis, mas as demais cidades e vilas situadas na Chapada vivem da história e do turismo.
Com o grupo já totalmente integrado, cuidamos dos últimos preparativos para a jornada que se iniciaria no dia seguinte.
No primeiro dia de caminhada fomos despertados pelo galo eletrônico de pulso do Antônio e que viria a nos acompanhar por todas as madrugadas da Chapada.
Saímos de Lençóis pela rua do cemitério por uma subida em estrada de terra ao norte da cidade. Percorremos a mesma estrada subindo uma colina deixando para trás a vista da cidade que se escondia no vale.
Mais à frente deixamos a estrada e seguimos por uma trilha que foi ficando cada vez mais estreita e que passamos a acompanhar por uma água que corria do alto da colina e que nos levou ao interior de uma pequena floresta onde pudemos ver vários cogumelos vermelhos. Atravessamos a floresta e passamos a descer a encosta norte desta colina. Lá embaixo fomos brindados com um refrescante banho de rio.
A água, como sempre avermelhada, estava limpa e bastante fresca.
Após o descanso, passamos a subir uma outra colina, cujo topo dominava um grande vale por onde desceríamos e caminharíamos por algumas horas. Atravessamos dois rios no fundo do vale e passamos a subir uma encosta à direita paralela ao rio que nos conduziu a uma garganta no alto de uma crista de onde avistamos, ao longe, o Morro do Pai Inácio, o Morro do Camelo e o contorno da BR 242.
A visão, embora longínqua do nosso objetivo, melhorou o rendimento do grupo.Ao chegarmos ao posto de combustível, encostamos nossas mochilas e subimos o Morro do Pai Inácio no finalzinho da tarde, de modo tal que as fotos capturadas lá de cima só foram possíveis com a tênue luz do por do sol. A falta de luz e o cansaço não conseguiram ofuscar a beleza daquele lugar bonito e ao mesmo tempo místico, como pudemos comprovar através das românticas estórias de Inácio e a Sinhá, contadas pelo guia local.
Descemos envoltos pela escuridão da noite. Um suculento jantar nos esperava no fogão à lenha. Dormimos numa pousada anexa ao posto de gasolina.
No segundo dia de caminhada, após um nutritivo café da manhã, iniciamos por um atalho rente a uma cerca de arame ao lado do posto que nos levou reto a uma baixada de mata ciliar.
Atravessarmos o riacho subimos poucos metros e passamos a contornar a encosta norte da Serra do Mucugêzinho. A baixa vegetação possibilitava a visão dos contrafortes da Serra da Bacia, do outro lado e por cima da baixada. Com o rio à direita continuamos contornando até o ponto em que avistamos ao longe o Morrão. A partir daí passamos a descer para uma mata fechada onde atravessamos para o lado direito do rio com o Morrão já mais próximo.
Fizemos a parada do lanche na beira de uma cachoeira com várias quedas e poços na encosta leste do Morrão. Daí até o nosso objetivo foi uma questão de paciência. Percorremos uma trilha plana na altura da cota mil, sempre contornando o Morrão até alcançar a base para nosso acampamento. Na verdade, do local do banho até a base do acampamento percorremos 270 graus dos 360 da aba de chapéu do Morrão. Após este desnecessário percurso esticamos nossas lonas ao escurecer e fizemos nossa primeira refeição quente longe dos recursos urbanos. Os miojos e saquinhos de sopas industrializadas foram de grande eficiência.
Extasiados, mal pudemos apreciar o céu todo estrelado. A dor cervical do peso da mochila empurrou todos para Morrãofundo das barracas. O papo de barraca e as brincadeiras orquestradas pelo Zé Augusto não foram correspondidos pelos cansados companheiros. O silêncio reinou assim que começou a soprar uma brisa sul que vinha de trás do Morrão e algumas barracas flamejavam suas lonas provocando um barulho intermitente. Imaginei que a essa altura meus companheiros já dormissem. Então, repentinamente, uma voz resoluta saltou do silêncio.
“Quem ta aí? Para com essa brincadeira!” Era o Airton e achei que tivesse
sonhando. Levantei-me para ajustar a barraca enquanto o Airton reclamava exigindo o fim daquela brincadeira e repetindo sempre. “Quem tá balançando a minha barraca?”
Solícito, Menudo sai de sua barraca com a lanterna em punho e se dirige à barraca do Airton dizendo, “é o vento Seu Airton”.
Inconformado, no escuro e não encontrando o seu aparelho de
surdez em meio à desordem, achava que quem balançara sua barraca fora o próprio Menudo.
Recolhi-me outra vez esperando que aquele acirrado impasse, logo, se resolvesse.
A lanterna do Menudo varria o interior da barraca do Airton à procura do seu aparelho, quando ele, mais uma vez, perguntou. “Mas... Quem balançou a minha barraca?”
Brinde– “Foi o Sete Trouxas”, disse o Antônio por cima da discussão.
A gargalhada irrompeu uníssona de dentro das barracas.

No terceiro dia acordamos cedo e duplamente felizes. A lua nova dissipou a brisa que vinha do sul e não choveu; a presença de algumas nuvens anunciava mais um dia de pouco sol.
Estávamos na cota mil e tínhamos à frente o Morrão, mais 418 metros e estaríamos no topo. Após o desjejum que foi rápido e prático como de costume nos acampamentos, subimos o Morrão, deixando na base as mochilas pesadas
e alguns companheiros que preferiram se poupar para a jornada do dia. À medida que subíamos, a neblina e o vento frio envolveram o Morrão privando-nos do visual que vez por outra se descortinava no horizonte. Subi na frente, na esperança de encontrar uma brecha nas nuvens e colher algumas fotos, quase em vão. Mas, para minha surpresa e alegria o heróico Airton chegou até o topo após vencer vários lances inclinados de pedras soltas e úmidas Dona Adéliaacompanhado dos sessentões Zé Augusto, Antonio e Dória.
Era hora de voltar, nossos companheiros aguardavam ansiosos por nossa chegada. Imediatamente à nossa chegada partimos para Lençóis voltando pela aba de chapéu do Morrão. No intuito de pegar um atalho pela direita quase seguimos para o Vale do Capão. Corrigimos a rota e pegamos a trilha que segue pelo Vale do Rio Ribeirão. Após várias horas caminhando por caminhos pedregosos e uma deliciosa parada para banho, subimos a encosta da Serra do Sobradinho, onde, já no escuro, atravessamos a garganta que nos levaria a Lençóis. Mais algumas horas e as lanternas não respondiam à escuridão, mas à direita da trilha, 300 metros abaixo, avistávamos as luzes de Lençóis. Mas que trilha pegar? A trilha seguia em frente aberta e visível, outra descia por uma ladeira de pedras e seguia na direção de Lençóis. O GPS indicava que o WPT do Camping estava no mesmo rumo da trilha que seguia em frente. Claro que qualquer das duas trilhas nos levaria a Lençóis, mas o cansaço e o adiantado da hora exigiam prudência. Enquanto descansamos por 10 longos minutos o Antônio e o Menudo fizeram uma investigação nos arredores e concluíram que desceríamos pela direita.
Chegamos a Lençóis beirando as 10 da noite ainda a tempo de saborear os quitutes do pequeno restaurante.
O quarto dia foi dedicado ao descanso em Lençóis e os últimos companheiros a se integrarem ao grupo fizeram o passeio dos arredores. Foi quando aproveitei para conversar com alguns nativos na tentativa de desvendar os mistérios do Sete Trouxas. Até então achávamos tratar-se de uma assombração fruto de uma crendice local. Mas essa possibilidade se afastava com a mesma velocidade que saíamos de Lençóis. Conjeturamos a respeito do mesmo nas imediações do Morro do Pai Inácio e os moradores locais jamais ouviram tal nome. Então poderia ser um apelido?
Recordo que no primeiro dia de caminhada saímos bem cedo do acampamento e fizemos uma pequena concentração em frente à Igreja, enquanto esperávamos pela Cléa, ainda envolvida com algumas urgências. Tão logo saímos, um a um, por um beco que leva à ponte, um nativo de aparência simples chamou a atenção de um outro que passaram a nos observar, travando o curioso diálogo: “Rapaz ali vai um monte de velhinho com cada sacão nas costas...!” Se ainda hoje os mochileiros são alvo de curiosidade, o que falar dos primeiros andarilhos backpackers, das décadas de 50 e 60? Se ainda hoje, mesmo usando equipamentos e mochilas modernas, temos que pendurar meias, saco de lixo e outros apetrechos. Há de se imaginar as trouxas que nossos precursores carregavam nas suas improvisadas mochilas.

No quinto dia, após um reconfortante pouso e café no alojamento de Dona Áurea, subimos a ruela que dá na Igreja e pude entrevistar Dona Adélia, uma velha senhora moradora de Lençóis que me contou a verdadeira história do Sete PalmitalTrouxas. Disse que há muitos anos um senhor de nome Manoelzinho perambulava pela cidade e pelas chapadas, não se sabendo ao certo o seu paradeiro e que não fazia mal a ninguém, tratava-se apenas de uma figura singular que ocasionalmente aparecia por Lençóis carregando as suas trouxas nas costas.
Pegamos uma ladeira de casas simples ao lado da Igreja que nos levou ao início da trilha da Serra do Veneno, atravessamos o Rio Ribeirão e subimos a encosta do Veneno, uma das mais difíceis trilhas da chapada devido ao solo pedregoso, aclive acentuado, ausência de árvores e a conseqüente irradiação solar. Foram longas horas de um extenuante “toca pra cima”. Vencida a encosta demos num platô por onde passa um canal artificial que trás muita água da montanha e que era utilizada pelo garimpo. Observamos a presença de um velho senhor que lavrava a terra e que mora num pequeno casebre cercado por algumas árvores frutíferas. Continuamos a subir em meio a uma vegetação de caatinga até a primeira parada numa pequena gruta com vista e vento para o leste. Após um breve descanso e lanche passamos a descer o cânion que nos levaria à Canoeira do Palmital. Ali pernoitamos ao lado da bela e barulhenta cachoeira.
No sexto dia acordei cedo com o raio de sol invadindo a neblina que fluía pelo cânion. Aproveitei para fotografar as sucessivas cascatas que se precipitavam pelas encostas íngremes. Distraído com as fotos mal pude perceber a aproximação de um rapaz que subia o cânion, por entre as folhagens, com uma pequena mochila. Mais acima meus companheiros já tinham acordado e puderam ouvir a história do triste fim de um gaúcho aventureiro. O rapaz já estava há 8 meses fora de casa se aventurando, sozinho, pelos Parques Nacionais do Brasil. Aqui na Chapada, tinha saído de Lençóis pela mesma trilha que a nossa e acampou na Gruta dos Macacos. Visitou a Cachoeira da Fumaça por baixo e após várias tentativas de encontrar a trilha que levaria a Cachoeira da Fumaça por cima e não tendo ninguém por perto para perguntar, desesperou-se abandonando todo o seu material de camping, inclusive a mochila cargueira e voltou para Lençóis com apenas a mochilinha de ataque. Escreveu com carvão, na própria barraca, um testamento doando todo o seu material para o primeiro que passasse por ali. Argumentamos que ele poderia voltar conosco, pois nosso bom e prudente guia Antônio na sua quarta temporada de Chapada conhecia a trilha para a parte de cima da Fumaça. Argumentos, em vão, e seguimos por dentro do cânion, num dos trechos mais bonitos da Chapada, com uma parada para banho na Cachoeira da Capivara e alcançamos a Gruta dos Macacos, onde constatamos o abandono do material. Um guia local que havia chegado um pouco antes de nós herdou o espólio do gaúcho. Visitamos a Cachoeira da Fumaça por baixo nessa mesma tarde. O acesso é por dentro do vale no leito de um rio onde não se vê nem se escuta o barulho das águas, apenas pedras, muitas pedras, seixos e blocos de toneladas. A chegada na cachoeira ao mesmo tempo encanta e oprime. Mas vamos falar disso no sétimo dia. Retornamos ao acampamento pela mesma trilha, na escuridão do fundo do vale e da noite que chegou antes de alcançarmos o acampamento.
No sétimo dia acordamos mal humorados. Pela primeira vez teríamos que limpar e secar nossas barracas da areia e da chuva da noite anterior, além do inconveniente das formigas que se espalhavam por toda a área do improvisado camping. Com o tempo chuvoso tivemos que encarar a trilha íngreme de pedras soltas que nos levou ao planalto. Há duas formas de se chegar à parte de cima da Cachoeira da Fumaça: uma é a que nós fizemos e que poucos se aventuram (é muito longe, de difícil acesso e com muitas subidas e descidas em 3 dias de caminhada) mas com a vantagem de passar por lugares muito bonitos; a outra é indo de carro até o Vale do Capão, em Caeté Açu, e de lá subir a encosta leste do vale por uma trilha que começa na entrada do Parque e caminhar por cima do planalto. Difícil dizer qual a parte mais bonita (a de cima ou a de baixo?). Toda cachoeira, quando o ângulo permite, deve ser vista como um todo. Não é o caso da Fumaça. O seu grande desnível (quase 400m.) visto de cima, só é possível deitando-se sobre uma pedra estrategicamente posicionada no abismo de grau negativo. De cima, o vertiginoso vazio exige cuidado e respeito. Lá embaixo, em meio aos jorros de água pulverizados pelo vento, o pequeno poço. No dia anterior visitamos o pequeno poço circundado pelos gigantes penhascos verticais. “Este anfiteatro apresenta, por milênios, um dos maiores espetáculos da terra”, pensei. De baixo é quase impossível ver e crer na água que evapora e se perde com o vento, aderindo em forma de chuvisco e gotejando do alto do imenso paredão úmido. Experimentamos, como prêmio, um banho gelado no escuro e profundo poço e voltamos para o acampamento pela mesma trilha do fundo do vale.
Na parte de cima havia um grande número de pessoas que tinham vindo pela trilha de Caeté-Açu. Ficamos bastante tempo no planalto apreciando a Cachoeira e a imensidão da planície que se estendia para as bandas do Recôncavo Baiano.
A trilha que percorre o planalto é totalmente plana até a encosta leste do Vale do Capão. De cima é possível avistar as terras que se prolongam para o oeste, todo o vale e o imponente Morrão na extremidade norte. Descendo a encosta, novos ângulos mostravam a plenitude do vale e as intimidades da vila de Caeté-Açu. Nosso guia Antônio, aproveitou para mostrar a extensão do vale, ressaltando que por ali começaríamos a jornada do dia seguinte. Em Caeté quebramos a abstenção de 2 dias à base de miojo. Uma deliciosa e fumegante galinha caipira guisada,
acompanhada por legumes locais, saciou a gula dos gulosos andarilhos e para refrescar suco de tangerina, colhida no quintal, por um real. Meu amigo Dória tinha razão quando me dizia pelo caminho “o Vale do Capão é um grande
pomar”.
No oitavo dia, conspiramos contra a resistência do Antônio e alugamos uma toyota para percorrer os monótonos quatro quilômetros de estrada, ganhando tempo par aproveitar melhor os Gerais do Vieira e subir pela trilha do Candombá, uma novidade para todos do grupo. Após vencer a encosta sul do vale do Capão, alcançamos os Gerais do Vieira, um imenso altiplano de vegetação rala. Quando a chuva começou, agradecemos pela carona da toyota pois sem ela teríamos muita dificuldade em subir a encosta sul, cujo solo é de barro liso e escorregadio. Na segunda baixada do altiplano resolvemos subir pela direita no que parecia ser a subida do Candombá. E era, mais um caminho de pedra, como tantos outros, utilizados nos áureos tempos do diamante e, claro, do ouro. Do alto do Candombá, caminhávamos protegidos da chuva e do vento que varria o altiplano. Mesmo assim pudemos observar a beleza da chapada que para direita se estendia e terminava nos precipícios do Esbarrancado lá para os lados de Guiné e à esquerda a impressionante e singular vista do vale dos Dinossauros (nome que demos a este altiplano de mais de 1200 m. de altitude entre a Serra do Esbarrancado e a Serra da Garapa ou Roncador). Distraído pela
paisagem e preocupado com a chuva o nosso guia quase atropela uma bela cascavel que esperava pelo sol bem no meio do caminho. Ficamos um bom tempo apreciando aquela raridade que ao se sentir cercada pelo grupo e sendo fotografada, chacoalhava cada vez mais alto a sua cauda nervosa. Seguindo sempre pela trilha reta que margeia o precipício do Candombá, dividíamos a atenção entre o cuidado com outras possíveis cobras e o cenário cada vez mais bonito, especialmente pela aproximação do Vale do Paty e dos paredões dos Castelos.
Um pouco mais à frente, lá embaixo a Ruínha, o nosso objetivo do dia. Descemos por uma trilha alternativa, íngreme e com muitas pedras soltas, um quebra bunda de mais de 200 metros de desnível. Uma capela, um barracão e uma venda de poucos metros quadrados compõem este lugar escondido no meio das montanhas. “É a casa do Joãozinho” disse o nosso zeloso guia. Entre outras histórias, soubemos que no passado existiu um pequeno núcleo habitacional formado por uma ruela. Uma espécie de meio de caminho entre Guiné, Caeté-Açu e Andaraí, é por ali que os andarilhos se encontram e pernoitam. O nosso grupo era apenas parte de um razoável numero de pessoas que se acomodaram ou no barracão ou em barracas. Para jantar tivemos o conforto do fogão à lenha, mas não ficamos livres do miojo que a cada dia diminuía o peso das mochilas.
No nono dia os preparativos matinais foram ágeis em função da estrutura da Ruínha: fogão à lenha, barracão de piso
cimentado, bica para higiene, entre outros confortos incomuns nos meandros da Chapada. Nosso grupo foi o primeiro a sair, seguindo o roteiro pré-estabelecido pelo nosso guia. No início subimos e descemos algumas colinas descampadas, encravadas no meio dos paredões dos Castelos do Paty. Não muito longe alcançamos a casa da Dona Maria e Sr. Wilson, pessoas extremamente simpáticas e hospitaleiras, cuja propriedade encontra-se no meio de três grandes Castelos, de frente para o mais bonito de todos. (Os Castelos, como são conhecidos por aqui, são montanhas que se destacam em meio aos paredões, não apenas pelo tamanho, mas pela beleza e por seu perfil de recorte irregular, como se fossem torres de um grande castelo). Aproveitando a hospitalidade da Dona Maia, fizemos uma parada, enquanto o Antônio, o Fernando e o Zé Augusto escalaram o Castelo. A Dona Maria também tem uma pequena venda para os andarilhos que passam por ali e verificamos que os seus produtos são os mesmos da venda do Joãozinho: sardinha em lata, biscoitos doce e jaca passa, uma especialidade da Chapada. Observando que o seu pomar estava cheio de laranjas, muitas se estragando pelo chão, perguntamos se ela não tinha algo diferente, frutas frescas, ou algo parecido. Após algum tempo ela surgiu com um grande cesto cheio de cana e banana, era tudo que queríamos, mas para nossa surpresa o cesto era a ração das mulas que descansavam preguiçosamente na sombra. E nós, com a maior inveja ruminando nossas frutas passas. Esta não foi a primeira ironia da Chapada: No dia anterior, chegando em Caeté-Açu, após passar dois dias bebendo a água parda, com clorim, dos rios da Chapada, sentei-me numa calçada e retirei o tênis pra ver o estrago do dia. As meias estavam imprestáveis e os pés imundos de lama. Pedi à dona da casa um pouco de água para lavar os pés e ela me trouxe um litro de água translúcida, segundo disse, era potável e retirara do poço, não resisti à tentação e bebi alguns goles daquele líquido cristalino antes de fazer a minha higiene.
Enquanto nossos companheiros exploravam o alto do Castelo, Dona Maria extrapolou na generosidade, convidou-nos a entrar na sua casa e nos serviu um delicioso café com pão caseiro, ainda quentinho recém saído do forno. Conversa vai, conversa vem, já estávamos na cozinha da Dona Maria em meio a uma fartura de frutas e iguarias feitas por ela num dos lugares mais remotos da Chapada. Na cozinha de Dona Maria pude comprovar que aquela senhora e o seu companheiro vivem muito bem e dignamente, melhor que muitos citadinos. As muitas panelas e louças penduradas sobre o fogão à lenha eram extremamente limpas e areadas. E sobre o fogão, a fumaça e o cheiro gostoso da comida.
“Puxa vida, seria muito bom passar uns dias caminhando por estes vales e montanhas e saboreando os quitutes de
Dona Maria”, pensei.
Nossos companheiros chegaram e, provocando, falaram maravilhas do alto do Castelo. Tínhamos quase todo o Vale do Paty a percorrer e pegamos a trilha que agora seguia o curso do rio. Mais à frente, dentro do vale, caminhamos envoltos por imensos tapetes de samambaias gigantes em meio aos paredões escondidos por uma típica floresta tropical. Nosso pernoite foi numa casa abandonada ao lado da casa do Sr.Bezo que serviu o jantar à base de frango frito e aipim, antes já tínhamos nos lambuzado com abacates e tangerinas apanhados do pé. Nesta região, conhecida como Prefeitura, há uma pequena escola primária ao lado do rio cujo leito, repleto de seixos, corre no interior do cânion. Este é o Vale do Paty!
No décimo dia o nosso café da manhã foi à base de frutas, muitas frutas e aipim que sobrou do jantar. Estávamos com o moral elevado. A síndrome do décimo dia estava definitivamente afastada e a iminência de alcançar o objetivo trouxe nova energia para os mais cansados. Ao mesmo tempo pairava nas mentes um ar melancólico, era o último dia de caminhada. Os lugares, as pessoas, os amigos, os papos, o silêncio, o esforço, o descanso, a divergência, a ajuda, o choro e o riso seriam apenas lembranças. Agradáveis lembranças da Chapada.
Após a Prefeitura pegamos a trilha do Caminho do Império, uma longa subida laboriosamente calçada de pedras que, no passado, serviu aos exploradores do diamante. Hoje serve às mulas que transportam as mercadorias na prática do escambo e aos montanhistas no nobre esporte de caminhar. No alto do colo, o divisor de águas, avistávamos a baixada. Fizemos um breve descanso e descemos a encosta que vai para Andaraí. Lá na baixada, em primeiro plano o pantanal dos Maribús, um manancial para onde convergem vários afluentes antes de desaguar no Rio Paragaçu. As encostas de pedras tangidas que cercam a cidade de Andaraí oferecem um cenário desolador. O garimpo foi cruel com a natureza, mas ela resiste.